Este texto é baseado no artigo O sangue na rede – mercado menstrual, menstruapps e tecnopolíticas de resistências de autoria de Larissa Pelúcio e trata sobre o aplicativo para ciclo menstrual Flo.
Aplicativo para ciclo menstrual
O texto fala do “crescente extrativismo de dados biológicos e fisiológicos que ocorre por meio de aplicativos móveis para o monitoramento do ciclo menstrual”. A autora utiliza o aplicativo para ciclo menstrual Flo como ponto de partida para essa discussão.
A menstruação é um processo biológico natural e normal no corpo de uma mulher. A muito tempo a menstruação conecta o corpo da mulher ao mercado de consumo, a partir da criação de produtos para tratar da menstruação, como os absorventes higiênicos. Com esses produtos, o mercado produziu formas da mulher gerenciar sua menstruação.
A partir desses produtos, passou-se a moldar uma mulher que menstruava em silêncio, higiênica e discretamente, transformando um tema que já era visto como desagradável, em um grande e proibidíssimo tabu. As propagandas mostravam que o absorvente higiênico veio para resolver a grande questão da menstruação, dando à mulher a chance de sangrar em paz, em silêncio e sem sujeiras.
O modelo de feminilidade que a publicidade passou a vender foi de uma mulher que não morria de cólicas, que não se sujava com seu sangue e que era livre e que mantinha sua menstruação discreta graças aos absorventes higiênicos.
Essas propagandas também ajudaram a reforçar a imagem de que feminilidade é se cuidar e não manchar a roupa de sangue e de que mulher é sempre delicada e cuidadosa com sua aparência. Ah, e o sangue não era vermelho, era azul. Quer dizer, eles falavam sobre a menstruação, mas apresentando um sangue azul porque não queriam mostrar o sangue de verdade, o impuro, o proibido, o tabu. Quem sangra azul, gente? Essas propagandas eram totalmente fora da realidade, mas fizeram as nossas cabeças durante muito tempo, principalmente quando não tínhamos a internet e as redes sociais para fuçar e ficávamos refém das propagandas televisivas.
Nos anos 2015 e 2016 a publicidade passou a aderir ao tal empoderamento feminino, essa palavra modinha e ridícula que fala, por meio da derivação de poder, que a mulher é dona de sua própria vida, que faz o que quer, que é isso, que é aquilo, que é aquilo outro e que merece respeito e que tem seus direitos, como se ninguém soubesse disso antes dessa palavra surgir.
O artigo diz que “o empoderamento feminista é a ideia de inspirar as mulheres a assumirem com confiança o controle e a responsabilidade por sua identidade e suas escolhas”. E o que aconteceu após essa palavra virar modinha? Pesquisas feitas naquela época mostram que houve um crescente interesse das empresas em produzir publicidade que dialogasse com esse conceito de empoderamento feminino, para, claro, vender mais seus produtos para essas mulheres empoderadas.
A partir de tudo isso que estava acontecendo nas sociedades e, devido a tanta influência cultural, surgiu o termo femvertising. Trata-se da ideia de que a publicidade pode capacitar as mulheres na medida em que vende seus produtos, ou seja, vende, mas capacita, forma essas mulheres, ensina essas mulheres, conscientiza essas mulheres.
Também foi pesquisado que conectar produtos a valores emancipatórios dá certo e é garantia de sucesso. Tire isso por você. Se você vê uma propaganda que conversa com seus valores pessoais e com aquilo que você acredita em um determinado momento, essa propaganda vai chamar a sua atenção e, muito provavelmente, te levará à compra daquele produto, porque entre comprar aquele produto de uma empresa que compartilha os mesmos valores que você e comprar produto de uma empresa que não compactua com suas crenças e valores, provavelmente, você comprará aquele que mais tenha a ver com o que acredita.
O conceito de empoderamento azeita o mercado neoliberal e aparece como central no ativismo menstrual do mercado norte-americano desde 1970. Esse conceito voltou a ser pauta em diferentes vertentes feministas que se esforçam para ressignificar o valor negativo do sangue menstrual.
A autora chama esses ambientes que buscam ressignificar o sangue menstrual, de espaços de resistência, no qual inclui pacotes de produtos e de serviços, todos focados na higiene menstrual, como cursos, oficinas, óleos essenciais, chás, propostas alternativas, termos como “Terapeuta menstrual”, “pessoas que menstruam”, “disco menstrual”, “educação menstrual”, “coletor menstrual”, “ciclo produtivo”, “ginecologia natural”, “ativismo menstrual”, “calcinha menstrual”, “pobreza menstrual”, e tudo isso é um conjunto que molda a plataformização da vida.
A autora também nos traz que o campo de pesquisas sobre menstruação e tecnologias digitais é ainda novo e ela busca refletir sobre o feminismo da mercadoria que designa os modos pelos quais propostas e símbolos feministas são apropriados por interesses comerciais, como um valor agregado ao produto comercializado, dedicando-se a analisar as mercadorias ofertadas pelas autodenominadas FemTech, no caso, os aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual.
As FemTech são empresas que surgiram para atender a uma demanda do mercado atual que passou a ver a mulher como potencial consumidora de produtos de tecnologia. O universo feminino passou a ser um nicho a ser explorado pelas empresas.
A autora também mostra que os menstruapps, nome dado aos aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual, tratam a menstruação como uma mercadoria e que buscam atender a um público específico de mulheres e não a todas as mulheres. Assim como todos os produtos têm seu público-alvo, sua persona ideal, esses aplicativos também o tem, porém, estão abertos à utilização de todas as mulheres. Dessa maneira, esses apps deslegitimam a subjetividade das mulheres porque tratam todas de maneira igual (palavras minhas).
Para pesquisar esse campo, ela escolheu o aplicativo Flo porque é o melhor avaliado e mais baixado na Google Play, “como um espaço experimental para o reconhecimento de lógicas algorítmicas que rodam em plataformas móveis e vão produzindo corpos menstruantes em fusão com a tecnologia”. As usuárias desses aplicativos estão imersas neste mercado de coleta e venda da moeda da era digital: os dados pessoais de cada uma.
Para melhor analisar o que é proposto, ela divide o texto em três fases do ciclo menstrual (mas você já sabe que o ciclo menstrual é composto por quatro fases):
- Fase folicular;
- Fase ovulatória;
- Fase lútea;
Fase folicular
Nesta parte do texto ela reforça que “os aplicativos, através da criação de fórmulas pela venda de dados íntimos dos indivíduos, alimentam uma longa tradição de medir e padronizar, medicalizar e monetizar a menstruação e os corpos de gênero”.
Milhares de mulheres, através desses aplicativos, disponibilizam para empresas internacionais, seus dados íntimos, provindos de seus reservatórios emocionais. A partir de suas emoções, elas informam a esses aplicativos aquilo que sentem e isso tudo é coletado e vendido para empresas poderem vender seus produtos, ajudando a reconfigurar os corpos femininos, controlando e moldando esses corpos a partir da influência que podem ter no universo feminino (palavras minhas).
A possibilidade de customizá-los dá a impressão de que a mulher está em um ambiente pessoal (subjetivo e seguro). Mas não está. O Flo, criado por dois homens europeus (muito importante frisar isso, afinal, homens não menstruam, mas decidem o que a mulher que menstrua tem que fazer com a própria menstruação), tem como objetivo “melhorar a saúde e o bem-estar de todas as jovens, mulheres e pessoas que menstruam ao redor do mundo”.
A partir do que a autora analisa, começando pela cor do app (todo rosa), identidade visual que mostra leveza, delicadeza, curvas, rostos finos, cabelos longos, sutiãs, etc, eu posso analisar que o app não atingiu seu objetivo, visto que ele atende também a pessoas menstruantes, ou seja, a homens trans. Também quero frisar que nem toda mulher tem cabelo longo, nem toda mulher é delicada, nem toda mulher gosta de rosa e nem toda mulher tem curvas da maneira como o app mostra. Só analisando a identidade visual podemos identificar um estereótipo feminino que não cabe na maioria das pessoas no mundo.
Logo, se for pensar, para algumas mulheres já não há uma identificação e é mais um produto que reforça esse estereótipo feminino, participando, portanto, do reforço desse estereótipo que muitas mulheres almejam alcançar e adoecem tentando alcançá-lo, não reconhecendo, nem acolhendo e nem respeitando suas próprias raízes devido a cultura que estipulou como os corpos femininos devem ser e agora, esses aplicativos estão aí para ajudar a dizer como essas mulheres devem sentir, o que devem sentir e como devem agir. Claro que isso tudo já existia, mas agora tem a coleta de dados para ajudar a moldar melhor estes corpos.
O aplicativo também incentiva o uso da pílula anticoncepcional, porque lembra a mulher de tomá-la. Dentro do conhecimento do sagrado feminino, os hormônios sintéticos, presentes na pílula anticoncepcional, quebram a ciclicidade da mulher por colocar dentro de seu corpo, hormônios sintéticos, impedindo, portanto a menstruação, visto que mulheres que tomam pílulas não menstruam.
Até aqui podemos analisar que esse aplicativo desconsidera a subjetividade feminina e os conhecimentos ancestrais porque não trabalha a ciclicidade da mulher, não capacita a mulher a se monitorar sem o aplicativo e reforça estereótipos de corpo e do ciclo menstrual.
O aplicativo tem uma parte que se chama “Papo privado” na qual existe uma pergunta assim: “qual apelido engraçado” para a menstruação você prefere? Então a menstruação precisa ser apelidada? Gente, isso reforça o tabu menstrual. Quer dizer, pode até não ter o nome de quem escreveu, mas deixa de ser um comentário íntimo se você compartilha com milhares de pessoas. Ali é um ambiente comercial, não é o quarto da nossa casa.
Tendo em vista isso, trago algumas perguntas para reflexão: por que temos que compartilhar tudo sobre nossa vida pessoal? Você acha isso bonito? Ficar falando sobre coisas íntimas para todo mundo? Pense sobre isso. Você falaria tudo pra todo mundo? Onde fica a sua privacidade? Quando você a perdeu?
Esses apps mineram (de minerar mesmo, como uma fonte do tesouro), informações valiosas sobre a saúde das usuárias, os ciclos menstruais, os estados emocionais e propõem soluções mágicas para geral, quer dizer, tudo serve para todas as usuárias. Ninguém é diferente de ninguém. Aí eles solucionam os problemas sem considerar as diferenças entre cada mulher, fomentando um molde que todas precisam se encaixar, falando de temas individuais como se fossem temas-macro.
E mais, frisam que as usuárias são as únicas responsáveis pelo compartilhamento dessas informações e são elas as únicas que têm responsabilidade com o automonitoramento, como se essas mulheres não fossem afetadas pelas informações que estão contidas nestes aplicativos, quer dizer, como se as usuárias fossem imunes ao que estão vendo. Ninguém passa ilesa por lugar nenhum. Estamos em sociedade e somos o tempo inteiro afetadas pela sociedade que nos encontramos e pelas tecnologias que usamos e, até mesmo, pelas que não usamos.
Mesmo os planos gratuitos não são gratuitos porque os dados são monetizados e têm alto valor no capitalismo de vigilância. As informações colocadas nesses apps parecem banais, mas não são. São tesouros e o resultado dessas informações — que você acha sem importância, só porque você não pode ser identificada pelas demais usuárias —, você pode vê-los influenciando suas decisões diárias por meio de eleições, informações sobre a saúde que são midiatizadas, afetando você e todas as pessoas ao seu redor, e se você tem filhos, eles também serão afetados de alguma maneira.
É a financeirização da vida real, por meio da coleta de dados de hábitos cotidianos que são disponibilizados nessas plataformas digitais. E depois, Talima? O que acontece com as informações coletadas? Elas são transformadas em mercadorias, em disseminação de informações para moldar e controlar corpos femininos, em reforço de estereótipos, em colonização digital. E tanto a circulação de mercadorias, quanto a circulação de sentidos, fazem parte daquilo que produz uma comunidade de valor, possibilitando a circulação de ideologias dos mais fortes e poderosos.
Os menstruapps são tecnopolíticos. Esses menstruapps produzem novos corpos, corpos humanos que se fundem à tecnologia, formando um só corpo. Os corpos femininos são reconfigurados nesses apps, no sentido de que eles alteram as configurações do corpo da usuária, para que funcione de uma maneira diferente com novas características conforme os interesses externos à própria usuária. A usuária passa por uma remodelação e reestruturação de seu ser, e passa a “funcionar” de forma diferente.
Dessa forma, o chamado capitalismo de dados, monitora não apenas nossas ações e interações como curtidas, compartilhamentos, visualizações, postagens, mas também o nosso psíquico e emocional. Esses aplicativos também participam e colaboram na constituição de outras formas de ressignificação do ciclo menstrual e do empoderamento feminino.
Fase ovulatória
Nesta fase, a autora nos fala que estes apps vendem a ideia de que monitorar o próprio ciclo é promover o autoconhecimento e que conhecer-se é se empoderar. Olha, monitorar o próprio ciclo é mesmo uma questão de autoconhecimento, mas o que as usuárias desses apps fazem não é monitorar seus ciclos, mas delegar esse monitoramento a esses apps, logo, elas não estão se monitorando, mas permitindo que grandes empresas façam isso por elas (palavras minhas).
Segundo o texto, “empoderamento consiste em um termo altamente polissêmico: ora definido como autocontrole e autoconstrução, ora em termos de influência social, poder político ou direitos sociais, o conceito vem sendo indistintamente aplicado aos níveis individual, organizacional e social, com pouca ou nenhuma atenção às relações de continuidade e de ruptura entre agência individual, ação coletiva e transformação estrutural”.
Fase lútea
Nesta parte, Pelúcio traz alguns motivos para o uso desses menstruapps e alguns prós. Cita que mais que monitorar a menstruação, o app convida a mulher a monitorar a própria saúde. Esse automonitoramento pode ser visto como compreender, controlar, gerenciar, regular, executar e expressar corpos. Diz que as mulheres que os utilizam, querem participar desse empoderamento e fazer parte desse movimento no qual elas decidem sobre seus próprios corpos.
A autora também diz que esses apps mobilizam a vontade de saber, quer dizer, as usuárias querem saber, querem se autoconhecer e, por isso, a adesão a esses apps é grande, já que também são vistos como ferramentas de autoconhecimento que contribuem para a capacitação das usuárias sobre seus próprios corpos. Logo, esses menstruapps são considerados femvertising.
São vistos pelas usuárias como facilitadores de autoconhecimento e autonomia frente à colonização médica sobre saúde de quem menstrua. Mas sai da colonização médica para entrar na colonização tecnopolítica do capitalismo de vigilância, ou seja, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
A partir desses apps, as mulheres produzem novos sentidos sobre seus corpos e sobre sua menstruação, sendo, portanto, reconfiguradas.
O crescimento do uso desses apps pode mostrar os esforços das mulheres em quebrar estigmas e se autoconhecerem de forma acessível , pois esses apps podem ser usados de forma gratuita.
Para mim, esses apps colocam em disputa os saberes ancestrais, ou seja, saberes decoloniais. Por meio da produtividade cíclica, a mulher consegue se monitorar sem precisar utilizar esses apps, somente observando o próprio corpo. Esses apps fazem com que as mulheres deleguem esse monitoramento e sejam moldadas por meio da tecnologia que as influencia e as atravessa, tornando-se um outro corpo na utilização desses apps.
Além disso, são tecnologias que servem apenas um lado: o lado daqueles que querem comandar e manter os corpos das mulheres sob controle por aqueles que querem lucrar com os conhecimentos emocionais e psíquicos dessas mulheres.
Esses apps podem parecer práticos para algumas usuárias, no entanto, mais prática é a produtividade cíclica que, além de não ter que usar app nenhum, não divide com grandes empresas sua vida íntima. A produtividade cíclica é um voltar-se para sua ancestralidade, é aceitação do próprio corpo, é acolhimento, é amor próprio, é autocompaixão. A produtividade cíclica é resistência frente a um sistema que faz de tudo para manter os corpos das mulheres sob vigilância, para depois, lucrar com isso e disseminar as ideologias euronorteamericanas.
A produtividade cíclica nos convida a partir do micro (nosso corpo) para o macro, que são as lutas por uma vida melhor, por um viver bem que é cotidiano e não futuro. É um viver bem que está no presente e que pode ser feito agora, vivido agora.
Nosso corpo é um oráculo, um guia, um mentor para nós mulheres e somente ele é o suficiente para que saibamos os momentos ideais para agir por uma vida melhor para nós e por aqueles que nos rodeiam.
Mulher, é isso. Espero que você tenha aprendido sobre como a produtividade cíclica é importante para monitorar sua ciclicidade feminina sem o auxílio de aplicativo para ciclo menstrual.
Te convido a visitar os demais textos sobre Produtividade Cíclica e a fazer bom uso desse tesouro que é a Ciclicidade Feminina.
Parabéns por ser mulher e obrigada por estar aqui comigo. Volte sempre aqui no blog e no canal no YouTube.
Até a próxima, tchau!
Fonte: O sangue na rede – mercado menstrual, menstruapps e tecnopolíticas de resistências. Autora: Larissa Pelúcio.
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e91483
Em: Revista de sociologia política/Política e Sociedade
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/91483. Acesso em 30/05/2025.
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